17 março 2006

Os direitos do autor



Esta história passou-se mesmo e se houver ficção parecida com este trecho de realidade é mera coincidência.
O dia despertava e como que maquinalmente as almas abandonavam os corpos e obrigavam-nos a deslocar-se para os empregos.
Num canto da esplanada, com umas peúgas brancas a espreitar entre os sapatos e as calças zangadas com estes, um homem, dos seus quarenta anos, observava com ar de felino, o carro dos cachorros quentes, estacionado junto á calçada. Quem passava nem reparava em tal personagem mas ele era mesmo isso discreto e eficaz.
Para que conste todos o chamam Ramalho mas o seu nome verdadeiro é António Bernardo da Silva Ramos.

José Bonifácio nunca lhe puxou para estudar, agora com trinta e cinco anos, como diz o povo, torce a orelha mas já não deita sangue. Vá lá herdou do tio afastado aquele carrinho de cachorros com o qual se sustenta.
Ás 10h46 em ponto ligou o rádio a pilhas que trazia pendurado no carro dos cachorros quentes, com uns atacadores já gastos. Como que impulsionado por uma mola invisível Ramos saltou do seu canto na direcção de Bonifácio.
- Bons dias! Senhor vendedor – com um gesto suave apresentou a sua identificação de fiscal da SPA – Pode amostrar-me a licencita que lhe aufere o direito de passar música em publico.
- Desculpe mas não entendi? – Respondeu o Bonifácio enquanto corava como um tomate - A licença de vendas está aqui na carteira, essa que disse desconheço.
- O senhor não sabe que para passar música em publico tem que pagar?
- Desconheço, mas se é por isso desligo já a telefonia. – Estica a mão e desliga o rádio.
- Pois, mas agora já é tarde, vai ter que levar com a bucha, desta vez vai pagar 250€ e da próxima é a dobrar.
- Direitos de autor o c… - saca de uma beretta que tinha escondida na bota, Ramalho ao ver o cano da arma tão próximo do nariz, saltou para traz e correu como um autentico Carlos Lopes paro o mais longe que as pernas lhe permitiram.
Ainda esbaforido deu consigo no meio de um campo verde, ao longe ouviu alguem a assobiar uma musica que lhe pareceu conhecida, claro é do Marco Paulo - pensou - Só telefonei para dizer, naa naaa naaa, é mais ou menos isso .
Rastejou ao longo da ribeira e de um salto apareceu á frente de um pastor que apascentava as suas ovelhas - Ó homem, você pregou-me cá um susto que me ia deixando gago.
- Pois é, pois é – foi-se limpando e ao mesmo tempo dizia – o meu amigo tem consigo a licença passada pela Sociedade Portuguesa de Autores para poder trautear essas músicas do grande Marco Paulo? – Ficou a aguardar uma resposta, como o pastor estava boquiaberto continuou – fica o meu amigo a saber que para animar o seu gado com música que o senhor não escreveu tem que pagar os direitos a quem teve o trabalho…
- Espere lá! Estava aqui a pensar mas olhe que as modas que o João Simão canta são quase todas covers e esta até é daquele moço que é cego…o Stevie Wonder.
- É Esteves Ondas e faz couves faz! Não apresente o papel que eu mostro-lhe já como elas mordem...
- Ainda bem que o refere, mas por obsequio quer ir embora ou atiço-lhe os cães?
- Chamou-me o quê? Obsequio? Isso é o senhor e a sua família.
- Nietzsche ataca! – Gritou para um enorme cão da serra.
Ó pernas para que vos quero… ainda hoje se procura este fiscal da SPA e dão-se alvíssaras a quem souber do seu paradeiro, é que ainda há comissões para ele receber.

8 comentários:

north disse...

È a tal coisa, todos tentam meter a unha onde podem!!
Foi mesmo isso que aconteceu (só não sou o gajo dos cachorros nem o pastor nem sei se o gajo era o Ramalho) aproximou-se calmamente utilizou os nossos serviços como cliente durante uns cinco minutos (possivelmente para perceber melhor se estava a ouvir musica ou se era o barulho do ar condicionado) sacou do cartãozinho e disse o que contas aí! Só não passou a multa porque nos deu um prazo para comprar a licença até Segunda-Feira!!

Anónimo disse...

Está fantástica a história...bem real !!! Critica bem eficaz, mordaz e oportuna ;-)

Beijinhos

Neoarqueo disse...

Soberbo, simplesmente soberbo este trecho de prosa.

Ò North, então foi na teu estaminé que apareceu o gajo da SPA?

Então qualquer dia estarei eu numa qualquer tocata na Quinta do Castelo ou noutro sítio público qualquer e há-de aparecer um mangas da SPA a exigir a licença para que o Trio Só Falta a Mãe possa tocar e cantar...

Bem, das duas umas: ou o Sr. Morais tira a licença ou eu passo a tocar só musicas minhas e passo a cobrar à SPA aquilo qué meu, na qualidade de compositor...

Unknown disse...

GSK, este texto está fabuloso.
Só falta o Senhor da SPA, quando “ripa” o seu cartão de identificação e em voz alta dizer:
– Eu sou o senhor da SPA!,
Ao qual o senhor dos carrochos quentes responde:
- Desculpe lá meu caro, mas SPA’S para mim não, eu não me dou com essas mariquices!

Abraços

JL disse...

Hilariante, amigo, este trecho de uma história parva e absurda que se realiza nas esquinas deste país real.
Um abraço e boa semana

Anónimo disse...

Muito divertido!
Parabéns!

Anónimo disse...

Ah!!! acerio e, isso voi onde em Portugal? pois só pode ser, sei lá digo eu...
Ass. XIII a.C

Zel disse...

Isso faz-me relembrar os meus tempos de Conjunto quando tínhamos de escrever o nome dos artistas que tocávamos, se isso fosse publicado ai meu Deus, é que era de mijar a rir.