Num daqueles dias de Primavera que nos fazem lembrar o Verão, desceu as longas escadas contando os degraus dois a dois e, apesar do passo acelerado chegou ao fundo fresco como uma alface. Havia qualquer coisa no liceu que o impulsionava a correr depressa para as aulas e os professores não eram com certeza. A sede de aprender também não. A campainha, com um som estilhaçado, grita para entrarem. O fundo da sala é o topo do mundo, dali consegue-se ver tudo sem ser visto. Como grandes filósofos dirigem-se á fonte de inspiração, e ao fim de cada golada de ginja parecem mais perto da lucidez, o álcool tem essa maléfica propriedade, dá uma visão mais clara do que não se consegue compreender. - …e a alma? Vocês acham que existe? - Pergunta o mais alto enquanto emborca mais um copo. – Não nem penses nisso! - Respondem-lhe quase em coro - Já viste a cor que a tua tinha? se tivesses alma era preta como a noite e nós com a nossa visão de ginja conseguíamos discerni-la sob a tua cabeça! – Mais uma gargalhada e mais um golo. -Nã, temos que ter alguma coisa que nos diferencie dos animais, eles não fazem estas farras e há muitos que já cá andam há mais milhares de anos do que nós. Se evoluímos todos como nos dizem em ciências da natureza… - Nem penses nisso, o prof de ciências até do carro se esquece em Lisboa não acredites nem nele nem no Darwin. A conclusão nunca chegou a aparecer porque o astro rei não espera por ninguém e de repente apresentou-lhes a tarde e mais aulas. Voltou a correr para escola, mais uma vez não era pelos conhecimentos, esses eram obtidos na tasca da tia Iva. Num dos intervalos lá ganhou coragem e ficou sentado no recreio a levar com o doce calor do sol no rosto e a conversar com ela sobre futilidades dessas idades, nunca se chegaram a tocar, nem um beijo deram. Mas durante esse instante o mundo poderia ter sido destruído e reconstruído por um big bang que eles não notariam nada. Entretanto acima deles as almas foram-se abraçando e beijando como fazem os adultos e assim ficaram á espera que cá por baixo fizessem o mesmo. - Que isso não volte a acontecer! Ouviste bem?! Se não já sabes… E nunca mais deve ter acontecido. As almas, que não existem, lá continuaram à espera e, como em qualquer teoria evolucionista, foram-se transformando e reformatando á medida dos dias que passam. As ginjas nunca conseguiram revelar a cor da alma. Mas o debate ainda vai no adro. - …escuta lá, queres dizer-me que se alguém morrer e for ressuscitado, sabes que os médicos já fazem isso, não é ao fim de três dias, é logo na hora, a suposta alma durante o espaço temporal em que o endivido-o está morto anda a vaguear? - Não, está a aguardar serenamente e até dizem que está a olhar lá de cima cá para baixo… - Não acredito nisso! – Viraram-se todos para uma zona de maior penumbra, onde, com um sorriso nos lábios, os olhos brilhantes e um copo de gin na mão, o rapaz mais pequeno do grupo, com os seus olhos castanho esverdeado as faces rosadas e um corpo quase esquelético mostrava que tinha estudado a matéria para o debate das tardes de sexta. Quase nunca abria a boca hoje com o poder do gin não parava de brotar a sua teoria - … cada um de nós é um composto químico que se pode materializar e um composto espiritual que não tem principio, tempo ou espaço, se lhe chamam alma, por mim tudo bem, mas não tem definição mundana. O mais velho, que tinha umas sapatilhas Sanjo, ergueu o seu copo para o tecto e com ar de aristocrata empertigado gritou alto e a bom som: - Brindemos á nossa alma que por ser imaterial não pode beber por nós. Os copos ainda continuam hoje a correr lentamente pelas gargantas dos corpos mas o passado continua a alcançar cada golo sem encontrarem a resposta para pergunta que sempre lhe queimou a mente – Qual é a cor da alma?
Na Quinta-Feira passada acabou o limbo, para mim nunca tinha existido. Se o grupo de estudos do Vaticano procurar com afinco, vai descobrir que o purgatório e o inferno também são frutos de criações brilhantes pois, segundo o documento que acaba com o limbo “…Deus é misericordioso e deseja "a salvação de todos os seres humanos", existindo "fortes bases teológicas e litúrgicas para esperar que, uma vez mortos, os bebés não baptizados são salvos…".Portanto, um Deus misericordioso não nos vai por em lume brando para toda a eternidade (que deve ser muito tempo).
Relativamente á alma, também deve desaparecer por decreto papal...mas enquanto não for extinta é, com certeza, verde e branca no seu estado mais puro.